domingo, 1 de junho de 2014

Ciranda de Pedra

"O relógio em cima do guarda-louça deu cinco pancadas secas. Virgínia olhou-o demoradamente. Era esta a hora em que as duas costumavam ir para o caramanchão. Conrado, que morava na casa vizinha, atravessava a cerca de fícus e vinha brincar também. Ou melhor, brincar não, que ele era sério demais para brincadeiras e Otávia não gostava de correr para não desmanchar os cachos. Reconstituiu o grupo: Otávia trazia a caixa de aquarelas e ficava pintando, sempre com aquele arzinho de quem não está realmente levando a sério nem ela própria nem os outros; Conrado - que todos os anos recebia medalhas por ser o primeiro da classe - não perdia tempo com conversas: vinha com um caderno ou um livro debaixo do braço e lá ficava a estudar, belo como um deus, no verde do gramado. Bruna lia a vida dos santos ou então cosia roupinhas para as crianças da creche. Quanto a Frau Herta, ficava horas e horas entretida com seus potes de avencas, adubando a terra, arrancando folhinhas secas, observando as plantas com aquele mesmo enternecido cuidado com que observava Otávia: só para Otávia e para suas avencas tinha aquele olhar de servidão. De amor

Virgínia decepou a cabeça de Otávia e colocou a sua no lugar. Acendeu-se o sol. Passeando pelo jardim, a flutuar como uma fada, veio vindo a mãe de mãos dadas com o pai. Tinha o rosto corado como... 'como uma romã', decidiu. Era vermelho demais, sim, mas se usava nos livros dizer que as pessoas saudáveis eram assim como as romãs, 'corada como uma romã!'. Conrado vestia a mesma roupa do moço da folhinha e tinha aquela expressão de deslumbramento: 'Virgínia, como seus cabelos são lindos! Quando eu crescer, vamos nos casar'.

- Será que você não cansa de roer as unhas? Hem, Virgínia?

- E será que você não cansa de... de...

- De quê?

Virgínia lançou-lhe um olhar turvo. Ela cerzia um lenço, 'o lenço dele'. Desviou o olhar para o chão.

- Vou um pouco no portão, volto já.

Na calçada defronte, viu Margarida.

- Vai passear? - perguntou Margarida correndo-lhe ao encontro. - Vai passear?

- Minhas irmãs me convidaram para uma festa mas estou sem vontade de ir... Minhas irmãs são muito ricas. Você já viu prato de ouro?

- Não.

- Pois na casa do meu pai tem prato de ouro. Um dia minha mãe e eu vamos morar lá.

- Sua mãe está melhor?

- Minha mãe sarou, não tema mais nada, está completamente curada, ouviu isso? - Agarrou Margarida pelo pulso: Você duvida?

- Eu não disse nada...

- Disse. Disse que eu sou mentirosa e agora vai Ter que pedir desculpas, vamos peça já desculpas. Depressa!

- Mas Virgínia... Me larga, Virgínia!

- Peça desculpas, senão aperto mais!

- Desculpa - gemeu a menina libertando-se num último esforço. Ficou um momento imóvel, os olhos atônitos cheios de lágrimas. Em seguida, atravessou a rua correndo.

- Margarida, volte, vem cá, eu estava brincando! Margarida, eu estava...

Suspirou fundo ao ver a amiga sumir pelo portão adentro. Sentou-se molemente no degrau de pedra e acariciou as pontas dos dedos intumescidos. Apoiou o queixo nas mãos. E ficou esfregando o pé num boneco desenhado a carvão na calçada." 

Lygia Fagundes Telles, 1954

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